sábado, 4 de fevereiro de 2012

Kalley no brasil




Kalley e o congregacionalismo brasileiro

Depois de passar algum tempo na Escócia e na Inglaterra, Kalley trabalhou como médico missionário durante dois anos na Ilha de Malta e outros dois na Palestina (1850-1852). Em Safed, organizou uma pequena igreja na qual metade dos participantes era constituída de judeus convertidos e a outra metade de ex-muçulmanos e nestorianos.[13] Sua primeira esposa, Margaret, veio a falecer no início de 1852. No final daquele ano, ele contraiu segundas núpcias com Sarah Poulton Wilson (1825-1907), a quem conhecera na Palestina. Sarah nasceu em Nottingham, Inglaterra, sendo sobrinha pelo lado materno de Samuel Morley, rico industrial e filantropo, membro destacado do Parlamento Britânico e líder da igreja congregacional.[14] A família também tinha ligações com os Irmãos de Plymouth através de outro tio de Sarah, John Morley.

Sarah recebeu uma educação esmerada e cultivou muitos dotes artísticos, revelados mais tarde na poesia, na pintura e na música. Foi grande defensora do nascente movimento das Escolas Dominicais. Seu trabalho evangélico teve início em Torquay, onde dirigiu uma classe bíblica que se tornou instrumento para a conversão de muitos jovens. Ela visitou a Palestina em março de 1852 em companhia de um irmão mais novo, que veio a falecer de tuberculose em Beirute.[16] Nessa viagem Sarah conheceu o Dr. Kalley, com o qual veio a casar-se em 14 de dezembro do mesmo ano. Esse casamento contribuiu para que Kalley eventualmente se afastasse de suas raízes presbiterianas e se voltasse para o congregacionalismo. Devido às suas extraordinárias qualificações, Sarah deu contribuições à obra do esposo que exigem uma análise mais detalhada do que é possível neste estudo. 


No inverno seguinte (1853-1854), Kalley, acompanhado da esposa, foi visitar os amigos madeirenses em Illinois. Passando por Nova York, esteve na Sociedade Bíblica Americana, onde conversou a respeito dos refugiados portugueses. Poucos dias depois, o dirigente da Sociedade Bíblica recebeu uma carta do Rev. James Cooley Fletcher (1823-1901),[17] pastor presbiteriano que trabalhava no Rio de Janeiro para a Sociedade de Amigos dos Marinheiros Americanos, pedindo-lhe o envio de alguns refugiados madeirenses para trabalharem no Brasil como colportores da Sociedade Bíblica. Kalley foi informado sobre isso e decidiu ele mesmo vir para o Brasil no ano seguinte.

O casal Kalley partiu de Southampton em 9 de abril de 1855, chegando ao Rio de Janeiro no dia 10 de maio. Por dois meses e meio se hospedaram em hotéis, mas não encontraram um local adequado onde pudessem residir e iniciar o trabalho evangélico. No final de junho visitaram Petrópolis e ficaram bem impressionados com a cidade. Viram que havia melhor possibilidade de iniciar o trabalho missionário ali do que no Rio de Janeiro, graças ao auxílio que poderiam receber dos colonos alemães. Souberam que uma bela propriedade (Gernheim = lar muito amado) situada em uma encosta do Bairro Suíço ficaria disponível em outubro. Mudaram-se para Petrópolis em fins de julho, hospedando-se em um hotel. Tendo feito amizade com a família do embaixador americano, Sr. Webb, que ocupava Gernheim, foi-lhes permitido iniciar ali uma escola dominical. Na tarde do dia 19 de agosto, a Sra. Kalley iniciou a classe dominical com as crianças da casa e de uma família vizinha. Leram a história de Jonas, cantaram hinos[18] e oraram. Assim nasceu a primeira Escola Dominical do Brasil. Algum tempo depois foi criada uma classe de adultos, dirigida pelo Rev. Kalley. Em 15 de outubro o casal mudou-se para Gernheim. A escola dominical cresceu e no ano seguinte surgiram classes em alemão, inglês e português, para crianças de oito anos para cima.

De agosto de 1855 a maio de 1856, o Rev. Kalley escreveu várias cartas aos irmãos de Illinois, convidando-os para virem ajudá-lo no Brasil. Em dezembro de 1855 chegou William D. Pitt, que havia sido aluno de escola dominical de D. Sarah na Inglaterra, e em agosto de 1856 vieram Francisco da Gama, Francisco de Souza Jardim e Manoel Fernandes, com suas famílias. No dia 10 de agosto daquele ano, na casa alugada por esses crentes no morro da Saúde, o Rev. Kalley oficiou pela primeira vez a Ceia do Senhor, com a presença de dez pessoas. O missionário viu desde o início a importância da literatura e convidou o Sr. Gama para trabalhar como colportor, o que este fez com muita eficiência, vendendo Bíblias e livros evangélicos. Algumas publicações foram encomendadas de Lisboa e outras produzidas pelo próprio Dr. Kalley. Ele também traduziu a famosa obra de John Bunyan, “A Viagem do Cristão” (O Peregrino), publicando-a no Correio Mercantil (outubro a dezembro de 1856) e depois em forma de livro. Também escrevia artigos religiosos nesse periódico. Ao mesmo tempo, desde que chegou a Petrópolis, Kalley procurou relacionar-se com as autoridades civis, inclusive com o imperador Pedro II, do qual se tornou amigo. Como seu vizinho, este foi visitá-lo várias vezes para ouvir sobre as suas viagens através da Palestina.

O casal Kalley partiu para a Inglaterra no dia 17 de janeiro de 1857, a fim de visitar uma tia de Sarah que se achava gravemente enferma. De Londres, onde ficaram por alguns meses, o Rev. Kalley enviou para o Rio de Janeiro uma grande quantidade de literatura. Chegaram de volta ao Brasil em 9 de outubro. Extremamente cauteloso após as perseguições sofridas na Ilha da Madeira, Kalley trabalhou dentro dos limites impostos pela lei brasileira, adotando como modelo básico de evangelização o “culto doméstico”.[19] No dia 8 de novembro, foi batizado o primeiro crente em Petrópolis, o português José Pereira de Souza Louro. No Rio, havia reuniões em português na casa de Francisco da Gama e em inglês na residência de William Pitt. Nos meses seguintes, começaram a surgir artigos na imprensa do Rio revelando preocupação com a propaganda protestante e a distribuição de “Bíblias falsas”. Um motivo a mais de inquietação para os líderes católicos eram as discussões sobre a instituição do casamento civil e outras medidas liberalizantes do governo imperial.

O congregacionalismo brasileiro

Em 11 de julho de 1858, Kalley batizou o seu primeiro converso brasileiro, Pedro Nolasco de Andrade, no Rio de Janeiro. Esse dia passou a ser considerado como a data da organização da “Igreja Evangélica”, mais tarde denominada Igreja Evangélica Fluminense (18-09-1863), para distingui-la da igreja presbiteriana organizada pelo Rev. Ashbel Green Simonton no início de 1862. Em Petrópolis, porém, não se chegou a organizar uma igreja, embora houvesse reuniões domésticas semanais, e os crentes ali batizados foram incorporados à igreja do Rio de Janeiro. A igreja do bairro da Saúde foi a primeira comunidade evangélica de língua portuguesa a surgir no Brasil, isto é, a primeira igreja “de missão” que conseguiu lançar raízes permanentes no país. Todas as outras igrejas existentes naquela época ou anteriormente eram constituídas de estrangeiros.[20] Kalley também continuou a exercer suas atividades como médico, prestando assistência gratuita aos pobres e oferecendo os seus serviços à comunidade, como ocorreu durante uma epidemia de cólera em Petrópolis no mesmo ano da sua chegada ao Brasil.

Outro marco importante do ministério do Dr. Kalley foi o batismo de duas senhoras de alta posição, Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto, ocorrido em Petrópolis no dia 7 de janeiro de 1859. Dona Gabriela era irmã do Marquês do Paraná e do Barão de Santa Maria. Elas haviam sido evangelizadas pelo crente pioneiro José Pereira de Souza Louro e mais tarde se transferiram para a igreja presbiteriana, na qual permaneceram até o final da vida. Esse batismo parece ter contribuído para o surgimento de pressões contra o trabalho do missionário, que em 26 de maio daquele ano foi proibido de clinicar pelo subdelegado de Petrópolis.

Mediante pressão do núncio, o governo imperial fez chegar à Legação Britânica um comunicado com diversas queixas contra Kalley, tais como propaganda de doutrinas contrárias à religião do Estado e tentativa de conversão de católicos à fé protestante. O missionário formulou uma série de quesitos sobre as suas atividades e os apresentou simultaneamente aos melhores juristas da época, os Drs. Joaquim Nabuco, Urbano S. Pessoa de Melo e Caetano Alberto Soares. Os pareceres foram altamente satisfatórios e no dia 16 de julho Kalley enviou à Legação Britânica uma resposta ao comunicado do Ministro do Governo e uma carta particular ao cônsul William Stuart explicando as suas atividades e os tipos de pessoas que freqüentavam as suas reuniões. Concluiu que a liberdade por ele exercida estava dentro dos limites da lei. Acrescentou que, caso o governo insistisse nas suas tentativas de silenciá-lo, se sentiria na direito de publicar os motivos para tanto e fazê-los conhecidos em todos os países de onde o Brasil esperava colonos.[21]

No dia 29 de agosto de 1859, Kalley defendeu tese na Escola de Medicina do Rio de Janeiro, sendo reconhecido como médico e autorizado a exercer essa profissão no Brasil. Nesse ínterim, recebeu forte apoio de brasileiros e alemães de Petrópolis, que produziram abaixo-assinados em sua defesa.[22] Kalley fez uma segunda viagem à Inglaterra de agosto de 1862 a agosto de 1863. Pretendia tratar do joelho que havia ferido em um acidente com o cavalo, procurar uma pessoa para ajudá-lo no seu trabalho e visitar a Palestina. Antes da sua partida, a igreja elegeu os seus primeiros presbíteros. Kalley retornou ao Rio de Janeiro no início de setembro de 1863 e no dia 2 de outubro foi formalmente eleito pastor da igreja a fim de poder realizar casamentos religiosos com efeitos civis, uma importante conquista dos protestantes brasileiros.[23] Em novembro de 1865, preocupado com o fato de um membro da sua igreja possuir escravos, Kalley fez uma “exortação” expondo seu ponto de vista contrário à escravidão. Seu primeiro pastor-auxiliar foi o Rev. Richard Holden (1828-1886), de março de 1865 a julho de 1871.[24] Isso permitiu a Kalley fazer uma terceira viagem mais prolongada à Europa e à Palestina, ausentando-se por dois anos e meio (dezembro de 1868 a junho de 1871). Em fins de 1873, o missionário foi para Recife, onde fundou a Igreja Evangélica Pernambucana, cujo primeiro pastor residente foi o Rev. James Fanstone (1851-1937), pai do Dr. James Fanstone (1890-1987), fundador do Hospital Evangélico Goiano, em Anápolis.

Em 31 de dezembro de 1875, foi eleito co-pastor da Igreja Fluminense o Rev. João Manoel Gonçalves dos Santos, um membro da igreja que havia estudado desde 1872 no “Pastor’s College”, de Charles H. Spurgeon, em Londres. Ele haveria de pastorear a igreja por quase quarenta anos. Estando mais livre das preocupações do trabalho pastoral, o Rev. Kalley pode dedicar-se à preparação de uma súmula das doutrinas aceitas pela Igreja Evangélica Fluminense, que recebeu o título de “Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo” e foi publicada em 1876. No dia 2 de julho daquele ano, após o acréscimo de um artigo sobre a natureza de Deus (atual artigo 4), a igreja aceitou formalmente os 28 artigos, que são até hoje a base doutrinária dos congregacionais brasileiros. Em novembro de 1880, o governo imperial haveria de sancionar tanto os artigos orgânicos (estatutos) da igreja quanto a sua base doutrinária.

O Dr. Kalley partiu definitivamente para a Escócia no dia 10 de julho de 1876, vindo a falecer em Edimburgo em 17 de janeiro de 1888.[25] Até o seu falecimento, não deixou de corresponder-se com freqüência com os líderes de suas igrejas no Brasil e em outros lugares de língua portuguesa (Portugal, Madeira, Trinidad, Illinois). Foi o pai espiritual e o mentor de toda uma geração de ministros e missionários que imitaram a sua visão, zelo e dedicação. Sentiu o desejo de criar uma sociedade missionária não-denominacional para enviar obreiros ao Brasil, desejo esse cumprido por sua esposa anos mais tarde, com a criação da sociedade “Help for Brazil” (Auxílio para o Brasil), precursora da União Evangélica Sul-Americana (UESA).[26]

Kalley e os presbiterianos

Como já foi observado, Kalley nasceu na Igreja da Escócia e manteve ligações com o presbiterianismo durante boa parte da sua vida. As igrejas que resultaram do seu trabalho na Ilha da Madeira, onde seus discípulos eram conhecidos como “calvinistas”, bem como aquelas fundadas por refugiados madeirenses no Caribe e nos Estados Unidos, foram todas presbiterianas.[27] No Brasil, embora ele tenha sido o introdutor do congregacionalismo, suas ligações com os presbiterianos e suas contribuições diretas e indiretas à obra presbiteriana são dignas de nota.[28]

Em primeiro lugar, houve o relacionamento pessoal e direto entre Kalley e o pioneiro do presbiterianismo brasileiro, Ashbel Green Simonton. No mesmo mês em que chegou ao Brasil (agosto de 1859), Simonton visitou a igreja do bairro da Saúde e conversou com o Dr. Kalley, que em tom paternal o incentivou e lhe transmitiu conselhos e advertências.[29] Simonton passou a pregar com certa regularidade na Igreja Evangélica, até que, no mês de dezembro, surgiu um conflito entre os dois obreiros. Devido a um mal-entendido, Kalley sentiu que o colega mais jovem estava invadindo o seu campo de trabalho e expressou as suas críticas a terceiros, inclusive através de uma nota anônima. O problema foi resolvido satisfatoriamente quando, ao ser interpelado, Kalley pediu desculpas por todas as alegações levantadas, revelando, segundo o testemunho do próprio Simonton, um espírito profundamente humilde e generoso.[30] Nos anos seguintes, formaram-se laços muito estreitos entre as duas comunidades evangélicas. Em 1896, durante o pastorado do Rev. James B. Rodgers, quando o templo presbiteriano precisou de uma grande reforma, a igreja reuniu-se no templo da sua congênere durante todo o período das obras.[31]

Kalley também contribuiu com a obra presbiteriana em um sentido mais amplo, através de pessoas originalmente ligadas ao seu trabalho. Quatro líderes das igrejas portuguesas de Illinois foram notáveis missionários presbiterianos no Brasil: Emanuel N. Pires (1866-1869), Hugh Ware McKee (1867-1870), Robert Lenington (1868-1886) e João Fernandes Dagama (1870-1891).[32] Pires e McKee foram dois dos primeiros pastores da Igreja Presbiteriana de São Paulo, por breve tempo. Todavia, Lenington e Dagama tiveram longos ministérios, evangelizando extensamente o interior de São Paulo e, no caso de Lenington, também o Paraná e o sul de Minas. Outro pioneiro extremamente operoso foi William Dreaton Pitt, um inglês que estudou na escola dominical de Sarah Kalley em Torquay, trabalhou junto aos portugueses em Illinois e foi a primeira pessoa a vir para o Brasil em resposta a um apelo de Kalley. Foi um dos fundadores da Igreja Evangélica Fluminense e um dos quatro primeiros presbíteros daquela igreja. Mudando-se para São Paulo, onde trabalhou no comércio, associou-se aos presbiterianos, tornando-se um valioso cooperador do Rev. Alexander Blackford. Faleceu em 1870, poucos meses após a sua ordenação ao ministério. O ministro presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (1822-1873), ex-sacerdote e primeiro pastor protestante de nacionalidade brasileira, trabalhou durante oito meses em 1867 e 1868 nas igrejas portuguesas de Illinois, com as quais se correspondeu até o final da sua vida.

Outros elementos ligados a Kalley que prestaram o seu concurso à obra presbiteriana no Brasil foram colportores, os mais destacados dentre eles tendo sido Manoel Pereira da Cunha Bastos, que precedeu o Rev. Blackford em São Paulo, e Manoel José da Silva Viana, fundador da igreja congregacional em Recife e colaborador do Rev. John Rockwell Smith. O português Bastos, um ex-diácono da Igreja Evangélica Fluminense, tornou-se colportor da Sociedade Bíblica Americana e foi enviado a São Paulo pelo Rev. Simonton, poucos meses antes da chegada de Blackford. Evangelizou um patrício, José Maria Barbosa da Silva, seu vizinho à rua Aurora, que por sua vez foi instrumento para a conversão dos jovens portugueses Antônio Bandeira Trajano e Miguel Gonçalves Torres, dois dos primeiros pastores presbiterianos nacionais.[33] Um último exemplo de contribuição congregacional ao presbiterianismo brasileiro foram alguns membros das igrejas de Kalley que se filiaram à igreja presbiteriana, dentre os quais se destacam as já citadas Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto. Henriqueta veio a casar-se com o irlandês William Esher e foi membro sucessivamente das Igrejas do Rio e de São Paulo. Foi mãe do Dr. Nicolau Soares do Couto Esher (1867-1943), conhecido médico e primeiro presidente da Associação Cristã de Moços do Rio e de São Paulo.[34] As ligações entre congregacionais e presbiterianos no Brasil se explicam pelo fato de, por muitos anos, esses terem sido os únicos representantes do protestantismo missionário no país, bem como pelas suas afinidades históricas e doutrinárias.

Peculiaridades pessoais e teológicas

Ao se avaliar a personalidade e contribuições desse missionário pioneiro, vários pontos merecem consideração, a começar do fato de que ele era movido por um profundo senso de vocação e de compromisso com a evangelização de outros povos. Ao deixar o conforto de sua terra natal e buscar o bem-estar material e espiritual desses povos, Kalley procurou identificar-se com as culturas em que trabalhou, embora não tenha se libertado de vários condicionamentos que afetavam a maior parte dos missionários europeus e americanos da época. Um exemplo disso era a sua tendência paternalista, própria de alguém que se considerava pertencente a uma cultura superior e que tinha, portanto, algo a transmitir a pessoas menos instruídas. Ele pagava as contas, administrava os fundos, decidia o que era heresia ou não, estabelecia as metas e era a instância final de apelação para todos os problemas,[35] mas não teve muita preocupação em preparar líderes para substituí-lo. As suas igrejas ficaram excessivamente dependentes dele e experimentaram pequeno crescimento após o seu afastamento e morte.

Outra razão para o pequeno crescimento da obra congregacional foi o isolamento inicial das comunidades, ciosas do princípio da plena autonomia da igreja local. Cinqüenta e cinco anos após a criação da Igreja Evangélica Fluminense (1858) havia somente treze igrejas organizadas no país. Foi só então, em 1913, que os congregacionais começaram a criar uma estrutura nacional, realizando a sua primeira convenção geral. Em termos de comparação, os presbiterianos, cuja primeira igreja foi organizada em 1862, já possuíam cerca de sessenta comunidades por ocasião da criação do Sínodo (1888) e em 1910, época da organização da Assembléia Geral, o número de igrejas haviam subido para 150, apesar das grandes perdas sofridas com o cisma independente de 1903.

Curiosamente, embora tivesse um forte sentimento anticatólico, Kalley demonstrou algumas vezes uma atitude positiva para com certos representantes da igreja majoritária, tendo se tornado amigo do bispo de Funchal e de um sacerdote culto do Rio de Janeiro. No Brasil, ao menos por algum tempo, ele não exigiu o rebatismo dos seus conversos, a não ser que o solicitassem explicitamente. Todavia, sua “Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo”, adotada como padrão doutrinário das igrejas congregacionais no Brasil, parece apontar em seu artigo 25 para o batismo de adultos somente.[36] Segundo o Rev. James Fanstone, Kalley se sentia inquieto quanto à validade do seu próprio batismo e no final da vida teria considerado seriamente a possibilidade de submeter-se ao batismo por imersão.[37] As noções de Kalley acerca da Ceia do Senhor são mais zuinglianas do que calvinistas: o sacramento é antes uma comemoração da morte de Cristo no passado distante e um testemunho ao mundo do que a alegre celebração da sua presença viva e do seu sacerdócio atual.[38] Outra característica de Kalley era a sua forte ênfase à santidade do domingo: ninguém era admitido como membro da igreja se não o observasse criteriosamente, mantendo-se afastado das atividades seculares.[39]

Seu uso da medicina e da educação como meios de serviço cristão e instrumentos para a evangelização continua válido até hoje. Outras estratégias que utilizou também se revelaram muito eficazes e exerceram uma influência duradoura sobre o protestantismo luso-brasileiro: reuniões informais nos lares; distribuição ampla das Escrituras (na tradução católica do padre Figueiredo) e de literatura cristã; uso da imprensa diária para a publicação de artigos e livros (como fez no Rio de Janeiro ao publicar O Peregrino, de John Bunyan); produção de hinos visando a instrução dos crentes e a evangelização (hinos esses utilizados por muitas gerações de evangélicos)[40]; treinamento de líderes leigos como colportores e evangelistas. Os esforços de Kalley no sentido de ter um bom relacionamento com as autoridades civis e outros líderes destacados, especialmente no Brasil, onde chegou a fazer amizade com o próprio imperador, expandiram os limites da liberdade religiosa e ajudaram a preparar as condições para a introdução e rápido crescimento do protestantismo.

Formalmente, Kalley permaneceu um presbiteriano toda a sua vida. Todavia, a sua personalidade e experiências contribuíram para torná-lo um obreiro auto-sustentado que nunca trabalhou sob os auspícios de qualquer denominação ou agência missionária. Seus conversos da Ilha da Madeira abraçaram o presbiterianismo nos diferentes países em que viveram graças, principalmente, ao apoio fiel e decidido da Igreja da Escócia. Todavia, no Brasil ele veio a adotar a forma de governo congregacional. Isso é explicado por vários fatores: sua falta de simpatia por estruturas denominacionais, suas ligações com a Sociedade Missionária de Londres (majoritariamente congregacional), sua ordenação por um grupo independente de ministros e o seu casamento com Sarah Wilson, cuja família tinha fortes laços com essa igreja. Alguns autores chamam a atenção para uma conexão darbista, visto que um tio de Sarah era filiado aos Irmãos de Plymouth e o Rev. Richard Holden, um inglês que trabalhou com Kalley por vários anos no Rio de Janeiro, filiou-se a esse movimento e criou uma divisão na Igreja Fluminense em torno dessa questão. Kalley deplorava o anti-eclesiasticismo dos Irmãos e algumas de suas doutrinas, chegando a escrever oito longas cartas pastorais à Igreja Fluminense sobre os erros do darbysmo (1878-1879), mas certamente foi influenciado por seu estilo de vida simples, seu culto singelo e seu “franco individualismo”.[41]

A teologia de Kalley pode ser descrita como um tipo de evangelicalismo amplo. Duas expressões significativas das suas idéias teológicas são os hinos que ele e sua esposa escreveram e a “Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo”. O professor Antonio Gouvêa Mendonça sintetizou as concepções do casal Kalley expressas em seus hinos: Deus ama todos os seres humanos, apesar dos seus pecados; a resposta a esse amor é individual e voluntária (em contraste com a doutrina calvinista da predestinação); a salvação não é definitiva, como no calvinismo ortodoxo, mas está sujeita a quedas; isso requer uma ética rigorosa que traça uma nítida linha divisória entre o fiel e o mundo.[42] O referido autor conclui que Kalley era um legítimo representante do puritanismo escocês mesclado com o wesleyanismo metodista. A “Breve Exposição” declara em seu artigo 19 que a igreja de Cristo é composta “de todos os sinceros crentes no Redentor, os quais foram escolhidos por Deus, antes de haver mundo, para serem chamados e convertidos nesta vida, e glorificados durante a eternidade”.[43] Todavia, a maior parte dos artigos poderiam ser aceitos por qualquer evangélico, reformado ou não. Os elementos específicos do calvinismo, tais como a soberania de Deus, a eleição divina e a perseverança dos santos, não são enfatizados.[44]

Apesar das deficiências que possa ter tido, Kalley ocupa um lugar de honra na história das modernas missões protestantes. No que diz respeito ao Brasil, ele estabeleceu a primeira igreja protestante permanente entre os brasileiros de língua portuguesa e foi instrumento para a abertura das portas para a evangelização do povo brasileiro. Através de sua amizade com elementos destacados da sociedade, dos seus métodos de trabalho, de suas consultas a juristas respeitados e de suas reações a tentativas de intimidação por parte do clero, ele contribuiu para a ampliação da liberdade religiosa no Brasil, que veio a ser usufruída por outros missionários e igrejas. Através de suas práticas evangelísticas, dos cultos domésticos e da escola dominical, do uso da hinologia, literatura e imprensa, de seus colportores e conversos que depois se tornaram presbíteros, pastores e evangelistas em outras igrejas, Kalley exerceu uma profunda influência sobre os mais diferentes aspectos do protestantismo nacional. Em especial, seu modelo de evangelização e culto exerceu uma influência profunda e duradoura na cultura evangélica brasileira. A venda de Bíblias e Novos Testamentos de casa em casa, a distribuição de folhetos, as conversas com amigos e colegas de trabalho sobre Cristo e os convites para participar dos cultos domésticos diários foram formas não-agressivas e criativas que permitiram a inserção da nova opção religiosa num período em que ainda existiam diversas restrições legais à propaganda protestante.

Erasmo Braga, o grande líder e estudioso do protestantismo brasileiro, nutria grande admiração pela obra congregacional no Brasil, entendendo que refletia a influência do não-conformismo inglês e do espírito independente dos puritanos. Fascinava-o em especial o caráter eminentemente nacional do novo movimento. Escrevendo em 1931, Braga afirmou: “Sua característica peculiar é o fato de que se trata de um movimento inteiramente nacional, que nunca esteve eclesiasticamente sujeito ou foi financeiramente dependente de qualquer sociedade estrangeira e representa na América Latina uma tendência muito significativa, a saber, uma resposta de mentes ibero-americanas ao Evangelho que não pode ser atribuída à atividade missionária estrangeira”.[45] Kalley tornou-se um marco na história das missões e um pioneiro reverenciado no vasto mundo de língua portuguesa. Dezenas de homens e mulheres influenciados por ele divulgaram a mensagem cristã e plantaram igrejas na Ilha da Madeira, nas Antilhas, nos Estados Unidos, em Portugal e no Brasil. Seu trabalho continua a produzir frutos no presente. Pessoas que pouco sabem a seu respeito são herdeiras do seu ministério e seguem as suas pegadas. A sua coragem, heroísmo e fidelidade continuam a inspirar os cristãos evangélicos – reformados e não-reformados – no cumprimento da tarefa inacabada.

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